terça-feira, 28 de setembro de 2010

RETALHOS DE UMA BIBLIOTECÁRIA

por Inajá Martins de Almeida

Era aos meus olhos como estar num conto de fadas. Eu que acostumada fora aos livros, dispostos em amplas estantes, na sala de nossa casa, o qual sentia verdadeira paixão em organizá-los em ordem de assunto: dicionários, enciclopédias, romances, história, geografia, obras gerais – método que eu mesma desenvolvera mediante sentidos práticos dos meus doze anos – agora posso me encontrar numa biblioteca de verdade.

Estou então na década de sessenta, quando no auge dos quinze anos, os livros fazem-me companhia constante – não diferente de hoje, quando me encontro em pleno século XXI, a frente de um computador, a compor retalhos de minha memória, entre livros.

Não eram poucas as estantes, dispostas em corredores amplos, ventilados, iluminados; majestosa construção ocupava parte do quarteirão, entrecortada por jardins ricamente ornamentados por flores e árvores, cuidada com aprumo e reverência como um templo do saber o deve ser.

Era obrigatoriedade, quando a passeio, visitá-la. Nessa época morávamos na capital paulista e, uma vez que nossa biblioteca particular supria todas as minhas necessidades escolares, a falta desses espaços, não ocupavam o meu pensar.   

Nas escolas (décadas de 50 e 60) o que podíamos encontrar eram armários dentro das próprias salas de aula, com livros didáticos, de histórias infantis, infanto-juvenis e alguns romances, os quais podiam ser revezados entre os alunos nos finais de semana – era um deleite apoderar-se desses livros, somente para nós. Era diferente. Ainda que tivéssemos livros em casa, o sentimento para com esses, era inexplicável. Muito tempo após poderia entender!

Os livros adotados pelos professores para as matérias (português, história, geografia, e outras mais) indicados e adquiridos pelos alunos, eram portados em bolsas, quando dia e matéria o exigiam. Assim, o conhecimento nos era passado por meio de intermináveis ditados, leitura através dos textos dos autores e livros recomendados, comentários ilustrativos, poucos, feitos por professores que, algumas vezes se apresentavam além do que a matéria exigia. Por serem raros esses, tornaram-se inesquecíveis, brilhantes, dignos de jamais serem esquecidos.

Meu professor de francês – no antigo ginásio – falava-nos de metrô em sua cidade – Paris – o que ainda nos era impossível vislumbrar. Dizia que a cidade de São Paulo estava atrasada nessa construção, o que acarretaria sérios problemas futuros. Realmente foi o que pude verificar na década de 70 e nas subseqüentes, quando então temos de conviver com esses transtornos constantes.

Salas específicas para bibliotecas? Raras! Apenas em grandes colégios podiam ser encontradas. Claro a Mário de Andrade já existia, mas a idade e a distância não me permitia freqüentá-la. Muitos anos após, transitar livremente por suas salas, apreciar sua bela arquitetura, mesmo pela calçada apenas, fora-me permitido, quando passo a trabalhar às suas imediações – centro paulistano.

Contudo, alegrávamos com aquilo que estava ao nosso alcance. Não podíamos ao menos imaginar o mundo informacional! Utopia aos nossos sentidos.

Ainda que possuísse intimidade com os livros, encantava-me, agora, com a impecável organização e a delicadeza daquela que se mantinha a frente daquele verdadeiro arsenal de conhecimento, orientando a quem a ela se dirigisse. Estava eu numa biblioteca de verdade. Eu mesma não saberia por onde começar. Orgulhava-me pelas coleções que dispúnhamos, quando percebo ser um grão de areia apenas, no universo literário que ali, bem a minha frente se apresentava.

Ao mesmo tempo em que uma alegria imensa tomava conta de meu viver, era acometida por uma grave apreensão: jamais poderia me apossar de todos aqueles livros (seria impossível!). E realmente, títulos não deixaram de se proliferar nos quatro cantos; bibliotecas, salas de leituras passaram a ser alvo de projetos; novos escritores vieram ocupar cenários editoriais; a internet abriu espaço para anônimos desfilarem seus dotes literários. A era da informação tornou a biblioteca virtual. Trouxe a biblioteca para dentro de nossos lares.    

Naquela época, não me importava com posições, títulos, formação profissional, contudo, respeitava sobremodo aquela presença impoluta, senhora de fino trato, esposa do diretor do ginásio estadual da cidade, profunda conhecedora do vasto acervo da biblioteca – aquele espaço era-lhe familiar, muito tempo depois viria eu mesma, poder entender aquela atitude.

Porém, por fração de segundo, naquele lugar, podia voltar aos momentos dedicados à organização das estantes de livros em minha casa, sentir o deleite e prazer na ordenação, ainda que sem explicação alguma para tal arranjo e ver invertida minha posição – de leitora para bibliotecária. Era a biblioteca que aos poucos penetrava minhas entranhas e se consolidava dentro de mim, ainda que de forma inconsciente.

Estava na adolescência e realidade com ficção se misturava num rodamoinho que muitas vezes davam verdadeiros nós em minha cabeça. Os livros bailavam, contavam histórias, falavam de amores, também de dores. Aos poucos forjava meu interesse, minha paixão, minha convicção por livros, leitura e bibliotecas. Logo buscaria minha formação acadêmica a qual me tornaria a profissional na área em que, sem o perceber estava me fortalecendo desde a meninice.

Livros e leituras formariam o acervo na biblioteca da minha memória – retalhos amealhados pelo caminho percorrido - ao ponto de me ver a declinar neste momento que: entre livros nasci, entre livros me criei, entre livros me formei, entre livros me tornei. Enquanto lia o livro, lia-me, a mim, o livro. Hoje não há como separar: o livro sou eu - Bibliotecária por opção, por paixão, por convicção.
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